Discorrer a respeito da felicidade segundo uma perspectiva aristotélica demanda, antes de qualquer coisa, estabelecer o diferencial entre aquilo que o filósofo define como sendo felicidade e aquilo que modernamente consideramos a respeito disso. Sendo assim, é mister utilizar o “argumento às avessas” e primeiramente estabelecer o que a felicidade não é, a partir do viés aristotélico.
Na atualidade ocidental, “felicidade” parece ter assumido valor de gozo dos sentidos (hedoné), mera satisfação de necessidades biológicas que não distam muito da felicidade animal. Como o desejo não pode jamais ser morto, a felicidade pautada no gozo é relativa e desemboca fatalmente em seu oposto, a infelicidade.
De fato, a idéia não é de todo absurda, mas esbarra no problema da multiplicidade: as coisas agradáveis e que trazem “felicidade” numa perspectiva moderna variam de pessoa para pessoa e, além disso, dependem de fatores exteriores. Uma vez retirado o elemento exterior que permite o gozo, a felicidade se esvai. E este prazer tão fugaz, que depende de elementos fora de nós, jamais poderia ser a eudaimonia defendida por Aristóteles em sua obra.
A eudaimonia está além do princípio do prazer. Traduzimo-la como sendo “felicidade”, mas é uma felicidade que se pauta numa qualidade imorredoura: a virtude. Impossível, portanto, falar sobre a felicidade aristotélica sem enveredar pelo conceito da virtude. A felicidade eudaimônica seria uma decorrência do exercício da virtude, ou seja, trata-se de algo que não depende de um elemento externo ou fugaz para me fazer feliz, pois vive em nós, é parte constituinte daquilo que somos e que nos tornamos com o exercício da construção humana. Não é “biologicamente garantido”, conforme nos tentam fazer crer os geneticistas, procurando genes da felicidade. Uma pessoa pode até ser bioquimicamente mais bem provida para o prazer, gozando de um bem estar sensorial superior e vivendo à base do gozo das próprias endorfinas mas, ainda assim, ela depende. Depende do externo para que sua bioquímica se ative. Depende do outro, objeto de seu gozo. E, viciada em gozar, perde sua felicidade tão logo este algo externo se esvaia pela própria natureza temporal e efêmera das coisas.
A partir desta perspectiva, podemos dizer que a felicidade aristotélica, eudaimônica, é uma disposição efetiva da alma, e não apenas afetiva. A disposição afetiva deriva do afeto (num sentido literal, “daquilo que nos afeta”), é reativa a algo, enquanto a disposição efetiva vem de dentro para fora. Brota da virtude e não está separada de sua práxis, ou seja, não é mero conceito, mas conceito posto em prática. Muito mais do que “virtude em potência”, para Aristóteles trata-se de virtude em ato.
Muitos autores apreciam definir a felicidade eudaimônica como sendo “a felicidade verdadeira”, em contraste à “falsa felicidade” que depende de fatores externos e se pauta no gozo sensóreo. Podemos contra-argumentar, dizendo que mesmo a felicidade efêmera, que se pauta no princípio do prazer, é verdadeira para quem a sente. E, mesmo que passageira, é eterna enquanto dura, parafraseando o poeta. Justamente por isso, não cremos que seria adequado definir a eudaimonia como felicidade “verdadeira”, pois não é falso de forma alguma dizer que um homem apaixonado, por exemplo, não está vivenciando a felicidade quando está ao lado de seu objeto de afeto. Ele de fato está, e seria prepotência intelectual chamá-lo de tolo. Sua felicidade, apesar de dependente, é inteiramente verdadeira, e isso nos diz o senso comum. Mas, sendo passageira, é fatal que desemboque num sofrimento posterior. Omnia mutantur, nihil interit: tudo muda, mas nada inteiramente. A paixão pelo outro torna-se ressentimento pelo eventual abandono, ou tristeza pela eventual morte, mas a busca pela felicidade persiste. Melhor seria, portanto, definir aeudaimonia como uma felicidade auto-orientada, em contraste à felicidade extra-orientada da hedoné. O exercício da virtude, segundo nos ensina Aristóteles, confere ao sujeito um gozo imorredouro, não-efêmero, que se basta por si.
Um exemplo que nos permite uma melhor fixação do que está sendo enunciado é a diferença entre paixão e amor. A paixão (pathos, mesmo termo que dá origem a “passivo” e de onde deriva a palavra “patológico”) demanda, para seu gozo, correspondência. Podemos ser eventualmente bem sucedidos em nossas paixões, e nos tornamos felizes. Tornamo-nos infelizes quando a paixão acaba, ou quando não é correspondida. A paixão exige correspondência. Já o amor por si só se basta, pois não depende de objeto, é virtude de quem sente. O ser apaixonado demanda vorazmente seu objeto, enquanto que o ser amante, exercendo sua virtude para além do princípio do prazer, sente-se feliz por simplesmente amar. O prazer do amor está na percepção da própria capacidade de amar, seja este amor correspondido ou não.
EUDAIMONIA: INATA OU CONQUISTADA?
Um ponto importante exige maiores reflexões: seria a eudaimonia algo a ser conquistado ou se trata de algo inato ao ser humano? Segundo Aristóteles, nenhum dos seres da scala naturale (os animais ou vegetais) seria capaz de atingir aeudaimonia, uma vez que a felicidade destes depende fundamentalmente da satisfação dos sentidos: a satisfação da fome, da sede, do sono, do desejo sexual, etc. Assim sendo, esta “felicidade maior” ou “felicidade não-dependente de objetos externos” seria própria apenas do homem, criatura da scala culturale (um ser culturalmente construído). Deste modo, podemos inferir que não é a eudaimoniauma característica biológica pois, se o fosse, poderia ser alcançada pelos animais. Seria, em verdade, muito cômodo pensar na eudaimonia como algo inato, genético. Algumas pessoas teriam este estado como algo garantido, enquanto outras estariam fadadas a uma restrição da felicidade maior. A felicidade maior, fruto da virtude, é algo que demanda a atividade humana, vem de dentro para fora. Sendo atividade, a eudaimonia é intrinsecamente humana. E pode ser vivenciada em qualquer momento da vida, contradizendo os que dizem que só é possível saber se um ser foi feliz na hora de sua morte. Se assim fosse, a felicidade seria restrita aos cadáveres.
A atividade virtuosa é, portanto, condição essencial da eudaimonia, desta felicidade maior. A condição humana é um constante fluir de prazeres, conquistas, infortúnios, dores e sofrimentos, e toda felicidade vivenciada a partir do gozo terreno está muito longe de ser eudaimônica.
Sendo uma disposição da alma que tem como meta a realização das virtudes, aeudaimonia não tem nenhuma identificação com a periodicidade, a fugacidade ou a efemeridade. Para aquele que exerce a virtude, quaisquer eventuais adversidades se revelam como meras contrariedades e pequenos obstáculos dentro do transcurso da existência. Aquele que exerce a virtude pode até sentir a dor, mas não se ressente (no sentido de ficar “sentindo indefinidamente” e preservando a dor), e tal ausência de afetação não decorre da insensibilidade, mas por magnanimidade e por nobreza – que, convenhamos, não é algo inato, mas conquistado por quem se dispõe a tanto.
UM CONCEITO “ORIGINAL” DE ARISTÓTELES?
Tais conceitos aristotélicos guardam grande proximidade com os conceitos budistas de felicidade, em mais de um sentido: Buda ensina que qualquer felicidade decorrente da satisfação exterior dará lugar, em algum momento, ao sofrimento e à perda. E, assim como Aristóteles, Buda proclama que a felicidade maior, além do mero gozo, só é alcançada a partir do exercício da virtude. E, do mesmo modo que Aristóteles, Buda afirma que a virtude está no “caminho do meio”. Aristóteles nos fala também desta “justa medida”, sendo para ele um conceito matemático. Ainda se valendo de conceitos matemáticos, vale salientar que, numa perspectiva aristotélica, a virtude não está apenas no meio, mas acima. Entre os extremos, a virtude se coloca no meio e acima, como a imagem de um triângulo: a virtude é o vértice. Justamente por ser “meio”, está numa altura mais elevada. Isso dito, vale apontar para uma (bastante) possível influência do pensamento oriental sobre os filósofos clássicos, como Heródoto, Eurípides e o próprio Aristóteles, a partir das aulas com seu mestre, Platão. Esta convergência de pensamentos parece causar estranheza a alguns filósofos ocidentais e é lastimável que não se busque, historicamente falando, os elos de ligação. Supor que o pensamento de Aristóteles é “original” é ingênuo, para não dizer pretensioso, uma vez que Buda disse as mesmas coisas, muito tempo antes.
ALCANÇANDO A EUDAIMONIA: A VIRTUDE EM
ATO!
Compreender integralmente a eudaimonia exige necessariamente a compreensão do que significa, para Aristóteles, a virtude. Isto porque a virtude participa da idéia daeudaimonia, sendo condição fundamental para esta. Aristóteles divide a virtude em duas categorias: a ética (moral) e a dianoética (intelectual). “Dianoética” vem dedianóias, “conhecimento demonstrativo”. Enquanto a ética é a virtude do pensamento, a dianoética é a virtude da ação. As duas principais virtudes dianoéticas são a sabedoria (nous) e a prudência (phronésis). As outras são a arte, a ciência e o intelecto. A virtude ética principal é a justa medida.
É curioso observar que, nos estudos do sistema oracular do Tarot quatro imagens se destacam como “virtudes cardeais”: a prudência (Arcano IX, “O Eremita”), virtude maior por ser base de todas as outras; a justiça (Arcano VIII, que leva o mesmo nome da virtude); a fortaleza ou coragem (Arcano XI, chamado “A Força”) e a temperança ou moderação (Arcano XIV, “A Temperança”) que pode ser descrita como sendo a prudência aplicada aos prazeres.
Estes outros conceitos de virtude derivam da ética e da dianoética aristotélica: a maior virtude ética, o caminho do meio, a justa medida ou “justiça” (Arcano VIII do Tarot) permite a realização da dianoética, ou “conhecimento demonstrado”: a prudência (Arcano IX), a arte e a ciência (Arcano XIV, também chamado de “arte” por Aleister Crowley), a inteligência (que domina as paixões bestiais – domínio este traduzido pelo décimo-primeiro Arcano Maior do Tarot, que nos mostra uma mulher placidamente dominando um leão). Diz-se, segundo alguns estudiosos, que o Tarot brota como uma forma de ensinar a virtude às crianças.
Carl Jung, em seu “Misterivm Conivnctionis” (“O Mistério da União”), chama também a atenção da construção da estrutura zodiacal, a partir dos quatro signos cardeais (que dão início às estações) como sendo representantes das quatro virtudes (que também levam o nome de cardeais): Áries (primavera) seria a inteligência; Câncer (o verão) seria a temperança; Libra (outono), a justa medida; Capricórnio (o inverno) a prudência. É digno de nota que para Aristóteles a virtude ética fundamental, a justa medida, que permite que as virtudes dianoéticas se realizem em ato, seja associada tradicionalmente ao signo de Libra, cuja simbologia está voltada para a construção da polis, para o que permite a elaboração de um corpo social e, conseqüentemente, valida a vida em grupo. Conforme cita o próprio Aristóteles em sua Ethica Nicomachea, “(…)Com efeito, a proporção é igualdade de razões, envolvendo no mínimo quatro elementos”. Fogo, Terra, Ar e Água, elementos do devir, devem estar proporcionais para que a justa medida se realize. Para Aristóteles, os elementos possuem seus “lugares naturais” e, desta forma, a virtude estaria em agir conforme a necessidade do momento. Não haveria, portanto, uma ética a priori, e sim uma ética a posteriori. O que é ético se revela no momento: num momento em que o Fogo se torna excessivo, por exemplo, devo apelar para os outros elementos a fim de atingir uma justa medida, uma proporção.
Traduções variadas podem definir as virtudes dianoéticas das mais diferentes formas. Alguns traduzem “arte” como “temperança”, por exemplo. No final das contas, chama a atenção o fato de que, para todos os tradutores, a virtude ética por excelência leva sempre o mesmo nome: justa medida, simbolicamente associada à balança que representa o signo de Libra, início do outono do hemisfério norte e da primavera no hemisfério sul. Sem este conceito inicial da justa medida, nenhuma virtude dianoética poderia se realizar. Sendo Libra o signo que representa “o olhar do outro”, podemos inferir que, para Aristóteles, a virtude se exerce sobretudo a partir da convivência com o próximo, ou seja, só é virtude enquanto ato relacional, e não apenas um conceito intelectual bonito para se meditar. É algo para se exercer. E, a partir deste exercício, todo ser humano pode alcançar a eudaimonia, ou felicidade maior que brota de dentro para fora, longe de ser algo inato mas, como toda coisa humana, algo a se conquistar, a se construir continuamente. E que ao ser conquistado não pode ser tido como garantido, pois demanda exercício constante da virtude, não havendo um fim para a história ou, como canta a canção:
"Você verá que é mesmo assim
Que a história não tem fim
Continua sempre que você responde sim à sua imaginação
A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz não
Como sou feliz, eu quero ver feliz quem andar comigo. Vem."
Nenhum comentário:
Postar um comentário